Pela primeira vez o banco financia diretamente uma associação indígena
A Associação Apiwtxa, que representa o povo Ashaninka da Terra Indígena (TI) Kampa do Rio Amônia, situada no Alto Juruá, conseguiu um feito histórico: foi a primeira associação indígena do Brasil a aprovar um projeto no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no valor de R$ 6,6 milhões, cujo objetivo é a proteção da floresta e o desenvolvimento sustentável de uma região de mais de 600 mil hectares no Acre.
O contrato foi assinado no final de abril em Brasília, com a presença da ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. Segundo Francisco Piyãko, que representou a Apiwtxa na assinatura do contrato, a aprovação dará suporte financeiro e potencializará um trabalho que já vem sendo feito há décadas pelos Ashaninkas de gestão territorial, desenvolvimento sustentável e proteção da floresta na região fronteiriça.
O projeto que começa a ser executado a partir de agora vai durar três anos e irá fortalecer, além das comunidades indígenas da TI do Rio Amônia e da TI Kaxinawá-Ashaninka do Rio Breu, 50 comunidades da Reserva Extrativista do Alto Juruá (REAJ), com cerca de 12 mil pessoas diretamente beneficiadas, sendo 1,5 mil indígenas.
Os recursos para o projeto são do Fundo Amazônia, criado em 2008 com objetivo de captar recursos para investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento, promoção da conservação e do uso sustentável da Floresta Amazônica. O fundo tem vários doadores, com destaque para a Noruega, país que mais tem destinado recursos para ele.
Para Piãnko, o projeto é de grande importância para o Acre e para a Amazônia. A comunidade Ashaninka tem uma tradição de trabalhar pela proteção da floresta, dos rios, da cultura e dos conhecimentos tradicionais. “Tivemos embates fortes no sentido de enfrentar madeireiros e temos debatido os grandes empreendimentos para que eles não coloquem em risco as nossas comunidades” – disse.
O projeto inclui demandas de comunidades não-indígenas da região, que também carecem de apoio para se fortalecerem e fazerem a gestão de seu território. Segundo Piãnko isso é uma coisa nova – fato reconhecido pelo próprio banco – de a gente atuar não de maneira isolada, mas pensar na sustentabilidade e na proteção da floresta como um todo.
“Até algum tempo atrás, era impossível sonhar com isso e hoje é uma realidade; o banco fazer um contrato direto com uma comunidade indígena, chegando direto na floresta. Isso é muito simbólico e a repercussão do que a gente está fazendo é muito grande no Brasil inteiro. Várias pessoas quiseram saber mais desse projeto” – contou.
Quando o contrato foi assinado, o próprio banco destacou o fato e isso soou muito bem para os doadores do Fundo Amazônia. Outro fato importante foi que banco não mudou suas regras por ser o proponente uma associação indígena. “Assinamos um contrato cumprindo com todos os requisitos, todas as cláusulas, de qualquer outro proponente, dentro das regras do financiamento do banco. Nós é que nos organizamos, preparamos e conseguimos cumprir com aquilo que cabe a nós como instituição, respeitando os trâmites legais para poder cumprir com nosso contrato. Não é porque o proponente é uma associação indígena que o projeto pode ser feito de qualquer jeito. As metas a serem cumpridas são muito claras; os objetivos e os compromissos serão trabalhados de uma maneira bem transparente de acordo com o que está estabelecido no contrato” – salientou.
Centro Yorenka Âtame (CYÃ)
Para a execução do projeto, a Apiwtxa tem uma vasta experiência e neste contexto o Centro Yorenka Âtame (CYÃ), que significa saberes da floresta, assume uma importância fundamental. Ele é um espaço, situado no município de Marechal Thaumaturgo, sonhado e tornado realidade pelos Ashaninkas.
Quando foi demarcada a TI Kampa do Rio Amônia em 1992, os Ashaninkas tinham uma política muito voltada a se organizar internamente para se proteger e se fortalecer. Isso foi realizado, o povo se organizou, foi feito um trabalho de recuperação de áreas. “A história é bonita – conta Piãnko – com resultados concretos como a recuperação dos quelônios, da caça, do peixe, das florestas e com muitos plantios”.
Na TI foi feita uma escola com um modelo bem diferente, com um processo de sistematização, de registro, fortalecendo os modos tradicionais e a relação com a floresta, de modo a que a tradição não se perdesse e esse era um dos seus conteúdos mais fortes. Chegou um certo momento, porém, que os Ashaninkas perceberam que tinham que começar a pensar no entorno. “Não adiantava fazer um muro, fechar nossa terra com a gente mesmo e ficar tudo bonitinho, enquanto ali ao lado as coisas continuavam do mesmo jeito. Foi então que decidimos expandir nossa experiência dialogar com os vizinhos” – explana Piãnko.
A comunidade Ashaninka começava a ter problemas, pois muitas pessoas, muitas instituições passaram a procurá-la para conhecer seus trabalhos, seus conhecimentos e este fluxo já estava começando a interferir em seu dia a dia. “Todo dia era gente aparecendo e tínhamos que mostrar nosso trabalho, falar dos nossos projetos” – conta.
Foi então que surgiu a ideia de criar um espaço na sede municipal de Marechal Thaumaturgo. A comunidade indígena foi em busca de parceiros e conseguiu adquirir 100 hectares de terra, em frente à cidade, no outro lado do Rio Juruá.
Na hora de colocar o nome no centro, mais uma vez a sabedoria Ashaninka se fez presente. Se colocassem o nome Centro Ashaninka ficaria parecendo que era um centro de saberes Ashaninka e isso eles não queriam. “Fomos além disso. Queríamos que os Ashaninka fossem mais um ali dentro, com seus conhecimentos e seus saberes, mas incluindo os saberes dos ribeirinhos, dos extrativistas, dos outros povos indígenas, ou seja, da população tradicional da região e inclusive da população urbana do município – explica”.
No local foi criada uma estrutura física, com alojamentos, salas de aula, auditório, refeitório. Inaugurado em 2007, o CYÃ virou um projeto demonstrativo. Tudo o que era feito na aldeia foi transferido para ele, agregando ainda o conhecimento da região, transformando-o num centro de referência dos saberes da floresta de modo que todas aquelas pessoas que procuravam conhecer o trabalho executado na aldeia eram encaminhadas para lá.
Hoje o CYÃ é um lugar muito importante, riquíssimo, devido á recuperação realizada. Onde havia apenas capim, resultado da criação de gado, hoje há uma floresta com muitos plantios e um grande sistema agroflorestal (SAF).
Na atualidade estão sendo feitos alguns ajustes para melhor utilizar aquele espaço. Piãnko conta que além dos debates, das rodas de conversa sobre os saberes da floresta, também se pensa na gestão territorial, na diversidade cultural e se discute como dialogar com o poder público local, estadual, federal, dentro do ponto de vista de fazer com que aquilo seja bem utilizado, sempre trilhando um único caminho que é o respeito à diversidade cultural, respeito aos conhecimentos tradicionais, respeito ao meio ambiente e o uso sustentável dos recursos.
“A orientação é passar para o cidadão uma noção de valores, destacando esse patrimônio que, às vezes, não é tratado com o cuidado necessário e finda se perdendo no meio da influência que é trazida de fora e fala mais alto que a base local”.
O projeto aprovado junto ao BNDES terá no CYÃ uma âncora importante e o trabalho já realizado no centro será potencializado.
Componentes do projeto
O projeto é composto por três componentes nos quais se propõe que, com base nas experiências da Apiwtxa, se promovam esforços para além das fronteiras da TI Kampa do Rio Amônia, apresentando aos demais povos da floresta meios alternativos para o seu desenvolvimento sustentável e preservação do território comum.
Os três componentes são: 1 – Assessoramento, capacitação e implantação de sistemas agroflorestais; 2 – Apoio à gestão territorial e ambiental nas comunidades indígenas e tradicionais do Alto Juruá; 3 – Desenvolvimento institucional da organização comunitária.
1º componente
O primeiro componente reúne atividades para consolidar e expandir a produção agroflorestal com ações que elevem sua atratividade econômica. As principais metas são: estabelecimento de SAFS em cerca de 100 hectares nas TIs do Rio Amônia e do Rio Breu e na REAJ. O projeto destina recursos para a construção de um viveiro e de um banco de sementes para produção de mudas de espécies madeireiras nativas e frutíferas a serem utilizadas nos SAFS.
A Apiwtxa contou com o apoio da Universidade Federal do Acre para definição da estrutura adequada. A instalação do viveiro é simples, mas o banco de sementes demandará a construção de uma sala climatizada com equipamentos para receber, secar, limpar e armazenar com segurança as sementes até a época do plantio. Para a implantação dos SAFS pelo público final as espécies poderão ser levadas ainda sementes, em que as comunidades produzirão as mudas em canteiros locais ou já as próprias mudas, transportadas em barcos para levar até 3.000 unidades. A Apiwtxa tem experiência com esta atividade e sente-se confortável em trabalhar com ambas as opções.
O projeto contempla um programa de capacitação em agroecologia e em boas práticas de manejo para comercialização. A formação em agroecologia será destinada a 90 moradores da REAJ. A capacitação em boas práticas tem previsão de participação de 10 índios e 50 não-índios, um por comunidade, os quais serão incentivados a atuar como multiplicadores em suas comunidades. Ambos os cursos serão realizados no CYÃ.
O primeiro componente ainda terá recursos para elaboração e implementação de plano de manejo e coleta de sementes florestais nativas abrangendo áreas onde existam matrizes de espécies valorizadas como o mogno na TI do Rio Amônia. Também estão previstos recursos de apoio ao registro de certificação da Cooperativa Ayõpare, também ligada à Apiwtxa, de forma a integrar o Sistema Nacional de Sementes e Mudas, visando garantir a legalidade da exploração das sementes.
O Projeto prevê ainda itens que complementam a instalação de agroindústria de polpa de frutas no CYÃ, que está sendo construída com recursos de outro projeto. Para apoiar as comunidades no escoamento de frutas in natura para a agroindústria e na distribuição da polpa de fruta produzida, o projeto conta com recursos para a instalação de pequenas unidades de armazenamento em três localidades estratégicas: uma na aldeia Apiwtxa e duas na REAJ, com a construção dos espaços e instalação de placas solares e aquisição de freezers.
Com o amadurecimento do empreendimento e da escala de produção, ao final do projeto está prevista a aquisição de um barco com capacidade de seis toneladas para escoamento da polpa produzida para Cruzeiro do Sul.
Componente 2
As ações deste componente baseiam-se na estratégia de educação ambiental e vigilância participativa, em que índios e não-índios são nomeados e capacitados para monitorar os territórios, orientar as comunidades e promover discussões locais. Para apoio às ações de vigilância serão construídas bases de monitoramento em três locais estratégicos na TI do Rio Amônia, duas delas bem próximos à fronteira com o Peru. Famílias Ashaninkas farão rondas bimestrais para identificação de suspeitas de invasão, ocupando temporariamente as bases por cerca de 15 dias e revezando-se na vigilância, sem prejuízo para suas atividades cotidianas.
Para a proteção de seu território, a Apiwtxa também fará a articulação transfronteiriça para a sensibilização das comunidades Ashaninkas do Peru, que se encontram extremamente pressionadas por empreendimentos madeireiros. Para potencializar este intercâmbio serão promovidos três encontros (um por ano) e ao final do último ano será realizado um seminário, com participação de lideranças de comunidades vizinhas indígenas e não indígenas e convidados de instituições públicas relacionadas, visando fortalecer a agenda transfronteiriça, com discussão de resultados e aprendizagem alcançados e proposições de parcerias e políticas públicas para a região.
Componente 3
As atividades deste componente visam a organização social das comunidades envolvidas no projeto. Para iniciar, a Apiwtxa conduzirá um planejamento estratégico com definição da missão, visão e linhas estratégicas de atuação tendo como base o PGTA da TI do Rio Amônia. Em seguida, a proposta é a realização de encontro com os demais envolvidos no projeto (REAJ e TI do Rio Breu) para a construção de um plano de ação.
Para apoio à estruturação física, o projeto contempla a construção de uma nova sede integrada para a Apiwtxa e Coooperativa Ayõpare, com instalações para escritório e acomodação de técnicos em trânsito, em Cruzeiro do Sul. Em benefício da Associação dos Seringueiros e Agroextrativistas da Reserva Extrativista do Alto Juruá (Asareaj), o projeto contempla recursos para a elaboração de um planejamento estratégico e construção de uma sede com aquisição de equipamentos básicos, inclusive um barco. A TI do Rio Breu terá apoio para a formação de lideranças para o trabalho de gestão ambiental e territorial, além de aquisição de dois barcos, um para cada uma das etnias dessa TI.
Por fim, está previsto no orçamento o desenvolvimento da comunicação institucional da Apiwtxa, atendendo às necessidades do projeto e da divulgação para a comercialização da produção agroflorestal. Os serviços a serem contratados envolvem a assessoria e capacitação de equipe da própria Apiwtxa, o desenvolvimento de marca, criação do site e produção de material de comunicação.
Quem são os Ashaninkas
Os Ashaninkas, conhecidos durante muito tempo na literatura etnográfica como Kampas, pertencem ao tronco etnolingüístico Arawak. Com uma população em torno de 100 mil indivíduos, eles são um dos povos indígenas mais numerosos da região amazônica, sendo o principal grupo indígena da Amazônia peruana. No Acre são cerca de dois mil indivíduos. O território Ashaninka estende-se por uma vasta região, do piemonte dos Andes centrais no Peru à bacia do Alto Juruá no Acre.
Flaviano Schneider
fonte: http://www.pagina20.net/papo-do-indio/povo-ashaninka-aprova-projeto-de-protecao-da-floresta-junto-ao-bndes/